Wearable criado em São Paulo pode prever crise de epilepsia

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Uma startup de São Paulo está perto de lançar um dispositivo para dar mais segurança às pessoas que sofrem com epilepsia. Um aparelho, que parece uma tiara, consegue identificar uma crise com até 25 minutos de antecedência, reduzindo um dos maiores problemas de quem tem a doença neurológica que é a imprevisibilidade dos episódios. O wearable avisa a própria pessoa ou alguém de sua confiança da mudança na atividade cerebral e da possibilidade de uma crise.

Batizado de Aurora, o equipamento deve ser testado ainda este ano no Hospital das Clínicas da Unicamp. Desenvolvido pela Episemic, empresa instalada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia da USP, o Aurora está em sua quinta versão.

Seu visual lembra um fone de ouvido ou tiara de cabelo e tem em seu interior um miniaparelho de eletroencefalograma. Um software processa as informações e faz soar alarme no smartphone caso detecte a aproximação de uma crise.

Wearable para antecipar crises de epilepsia foi criado por mãe e filha

O projeto foi idealizado pela engenheira eletricista Paula Gomez e sua mãe a física teórica Hilda Cerdeira, estudiosa da teoria do caos e sistemas não-lineares, além dos engenheiros Conrado e Giuliano Leite de Vitor. A ideia é que o paciente, sabendo que vai ter uma convulsão, possa chamar ajuda ou ir para um lugar seguro.

Esses eventos podem se manifestar de diferentes maneiras, entre elas convulsões com movimentos motores rítmicos e repetitivos e desmaios breves com lapso de memória. É esse padrão que a física Hilda Cerdeira diz ter identificado depois de se debruçar sobre bases de dados internacionais com informações de pessoas com epilepsia que ficaram internadas para serem submetidas a cirurgia.

Pesquisadoras paulistanas desenvolvem wearable para identificar crises de epilepsia

Protótipo do Aurora: wearable poderá ser usado o tempo todo por pacientes

Em suas investigações, a pesquisadora afirma ter detectado a ocorrência de um padrão cerebral específico a partir de 25 minutos antes da crise. “Muita gente tenta encontrar um padrão”, afirma Cerdeira. Argentina naturalizada brasileira, ela já estava aposentada pela Unicamp e pelo Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam, em Trieste, na Itália, quando iniciou as pesquisas com os sinais cerebrais da epilepsia, empregando uma metodologia desenvolvida anteriormente por ela para decodificar sinais caóticos em sistemas não lineares.

O interesse pelo assunto surgiu ao proferir uma palestra no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, em 2008, e tomar conhecimento do padrão desordenado dos sinais dos encefalogramas. Prova de fogo A pesquisa realizada na Epistemic, afirma Gomez, está em linha com a que é feita pelos grupos mais avançados no mundo. Os dados de aproximadamente 200 registros de crises epilépticas focais e generalizadas em 50 pacientes foram utilizados por Cerdeira para identificar um padrão da chamada fase pré-ictal – termo médico que pode ser traduzido como pré-crise.

Equipamento poderá monitorar pacientes 24 horas por dia

A inovação do Aurora é transformar os equipamentos hoje usados para mapear ondas cerebrais em um wearable, que pode ser usado o dia inteiro e também para dormir. “É igual aos aparelhos tradicionais de eletroencefalograma, só que miniaturizado. Cabe na palma da mão”, diz Paula Gomez

O Aurora é dotado de quatro eletrodos, que ficam em contato com o couro cabeludo. Dois deles captam os sinais elétricos cerebrais, um de cada lado da haste, e os outros dois verificam se os demais estão bem posicionados e funcionando corretamente.

O neurologista Carlos Eduardo Soares Silvado, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que o grande desafio do Aurora será detectar as crises com 25 minutos de antecedência. “As crises começam e rapidamente se instalam, muitas vezes em questão de segundos”, sustenta. “Se o Aurora funcionar, será fantástico, terá grande serventia para os portadores de epilepsia.” Ele ressalta, contudo, que há casos em que o próprio eletroencefalograma hospitalar não consegue achar o foco das crises, dependendo de sua localização no córtex cerebral.

Para chegar ao mercado, além de se mostrar viável em testes clínicos, o dispositivo precisará ser aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O projeto já rendeu algum reconhecimento nacional e internacional à Epistemic. No ano passado, a startup foi selecionada para participar do programa de aceleração Creative Startups, da Samsung, que oferece até R$ 200 mil para os desenvolvedores que investiram no produto.

Em 2018, Gomez foi agraciada com o Cartier Women’s Initiative Awards, que celebra iniciativas de empreendedoras. O prêmio foi criado pela marca de joias Cartier, em parceria com a escola de negócios francesa Insead e a consultoria norte-americana McKinsey.

Com os recursos da Samsung, a startup criou um aplicativo, o Epistemic App, que funciona como um diário, onde o paciente pode registrar dados referentes a alimentação, sono, atividade física, entre outros. O dispositivo foi lançado no ano passado, juntamente com a plataforma Epistemic Web, onde as informações anotadas pelo paciente no aplicativo são transformadas em gráficos e relatórios e compartilhadas com os médicos. Gratuito e disponível na Google Play, o aplicativo conta com 1,1 mil usuários ativos e já sofreu cerca de 4,5 mil downloads.

Concorrentes usam lógica diferente da presente no Aurora

Um artigo de revisão publicado em 2020 na revista científica Acta Neurologica Belgica fez uma comparação entre 16 diferentes sistemas vestíveis focados em detectar crises epilépticas. Entre os dispositivos não invasivos, a maioria identifica alterações motoras comuns durante a crise. A detecção ocorre graças a instrumentos chamados actímetros que integram esses dispositivos. Disseminados em smartphones e relógios, os actímetros são capazes de apontar se o usuário está andando, correndo ou em repouso. Muitos também têm sensores de temperatura da pele e de batimentos cardíacos.

Aprovada pela FDA, Food and Drug Administration, agência norte-americana que regula alimentos e medicamentos, em 2018, a pulseira Embrace, da companhia ítalo-americana Empatica, tem um biossensor de atividade que detecta crises convulsivas – que são crises com abalos musculares – e manda um sinal de alerta, via bluetooth, para o celular de uma pessoa próxima ao paciente.

A empresa americana SmartMonitor criou o relógio inteligente Inspyre, que detecta abalos do movimento característicos de convulsões e avisa familiares. Porém esses aparelhos não detectam as crises epilépticas que não apresentam abalos musculares, e que são, em geral, as mais frequentes. Outra categoria é a dos aparelhos invasivos ­– utilizados em casos mais graves, nos quais a condição é refratária a medicamentos e as crises epilépticas são fortes e frequentes – com eletrodos implantados no interior ou na superfície do cérebro dos pacientes em uma placa de silicone.

Já a startup californiana NeuroPace desenvolveu um aparelho de eletroestimulação, batizado de RNS, que é implantado no cérebro de quem tem epilepsia refratária a medicamentos. O sistema envia breves pulsos de estimulação elétrica para o cérebro, conforme necessário e segundo o programado pelo médico. Com sede na Irlanda, a Medtronic também oferece uma solução de neuroestimulação, com aparelhos implantáveis, tanto para pacientes com epilepsia refratária a remédios como para portadores de Parkinson.

Para Cendes, dispositivos vestíveis, os wearables, apresentam algumas vantagens em relação aos invasivos. “Tudo o que é não invasivo é muito mais prático”, pondera. “O paciente não depende de cirurgia e, por isso, não há riscos de infecção ou de outras complicações. Além disso, o custo é muito mais reduzido.”

Fonte: Revista Fapesp