A forma de abastecermos nossas casas passou por duas transformações substanciais: quando saímos dos produtos a granel para empacotados e quando foi implantado o sistema de código de barras. A tecnologia no varejo é algo que impacta diretamente na vida de todas as pessoas. Por isso, investe-se tanto em encontrar uma solução que encaixe bem nesse setor.
Apesar de muitos estarem perseguindo essa bala de prata, a minha aposta é de que não teremos uma solução única para a tecnologia no varejo. Das dark stores às lojas totalmente automatizadas, do e-commerce às lojas físicas focadas em promover experiência do consumidor, há muitas soluções possíveis para cenários variados, especialmente quando olhamos para supermercados.
O que é tecnologia no varejo?
A adoção crescente das compras por m-commerce, as transações por dispositivos móveis, especialmente por aplicativos, tem sido vista como bola da vez quando se fala em tecnologia no varejo. Os números embasam essa tendência que, de fato, é muito forte.
Porém, quando olhamos as possibilidades de emprego de tecnologia no varejo, especialmente para supermercados, percebemos que para além do buzz de soluções que são mais visíveis porque impactam diretamente na experiência do cliente, há muito o que fazer da porta para dentro que impacta mais significativamente nos resultados. Estamos falando de otimizar rotinas operacionais, melhorar relacionamentos, otimizar recursos e garantir uma melhor experiência não só para o cliente final, mas para todos os stakeholders. Isso cria mais margem em um setor onde ela costuma ser bastante estreita, gerando muita oportunidade.
Soluções mais utilizadas atualmente
Uma das lições que podemos aprender é que tudo vai variar de acordo com o tipo de empresa e do país que ela está. Vejamos alguns exemplos:
- A Amazon, nos Estados Unidos: a Amazon não só comprou a Whole Foods, mas está abrindo várias outras redes de supermercado próprias com outras bandeiras. Dependendo de cada rede que olhamos, da própria Amazon, eles têm tecnologias diferentes. Então no Whole Foods eles não fizeram uma digitalização muito grande, mas nas lojas da Amazon Fresh, Amazon Go, que são bandeiras deles, de supermercado ou de conveniência, elas usam uma tecnologia totalmente própria. A Amazon nasceu com esse DNA, como um varejista que desenvolve todo o software da cadeia.
- A Ocado, na Inglaterra: ela nasceu totalmente digital. Apesar de não ter lojas físicas e só trabalhar com entregas, eles têm todo o software distribuído e os CDs (Centros de Distribuição) totalmente automatizados. Isso é algo que não funciona muito bem no Brasil (CDs automatizados), porque o custo da nossa mão-de-obra ainda é bem barato para automatização total se pagar.
- O Alibaba, na China: o Alibaba que tem o Hema, que são lojas também totalmente digitais, desde a parte de controle até a parte até a parte da experiência do cliente na loja, as informações, ver como o produto foi feito, etc.
Quando falamos do Brasil, no geral, os grandes supermercadistas, os grandes varejos, têm algo mais clássico, como a compra de soluções tecnológicas de prateleira. Então, você vai ter o pessoal normalmente operando com uma VTEX, operando com um Hybris da SAP para a parte de e-commerce, usando um WMS clássico de mercado no CD. São diversas as soluções de software para PDV (ponto de venda), mas a maioria contratada de terceiros, onde apenas algumas customizações são feitas no produto padrão.
O mercado no Brasil
No nosso país, a questão mais relevante não é nem a avaliação para as soluções tecnológicas que adotamos atualmente e sim para onde o mercado está indo. Neste sentido, vale apontar que a barreira entre o varejo tradicional e o varejo supermercado está cada vez menor.
Temos, por exemplo, o Pão de Açúcar abrindo um marketplace deles onde vão vender tudo. Magazine Luiza, MercadoLivre e outros vendendo produtos de groceries – aqueles que abastecem os lares e tradicionalmente são adquiridos em supermercados -, só que ainda não estão vendendo perecíveis. Será que vão entrar? E se vão entrar, como e quando vão entrar?
Há a 99 e outros players entrando nesse mercado… temos visto aplicativos exclusivos de comida como iFood também entrando. Até mesmo a Uber, que era uma empresa de last mile, comprou o Cornershop, que era o maior concorrente da Rappi na América Latina e também está explorando este filão.
A questão é que essa barreira entre o cara que era só um varejista e quem operava no mundo digital está ruindo. Quem era digital está abrindo loja física, quem tinha loja física está abrindo digital, quem vendia só não-perecíveis ou produtos não-groceries, não de supermercado, está entrando no outro setor e vice versa. Parece que essas barreiras estão cada vez diminuindo um pouco mais. E para conseguir fazer tudo isso, cada vez mais essas empresas vão precisar de mais tecnologia. Qual o modelo que vai ganhar? Eu acho que é algo que a gente ainda tem que ver onde vai parar.
Na verdade, ninguém sabe ao certo onde vamos parar. Se alguém falar que sabe onde é o futuro, posso assegurar que não sabe. Todo mundo tem seus palpites, suas apostas, suas estratégias. Mas quando a gente olha o que está acontecendo no mundo e aqui, como a gente falou, que cada lugar é de um jeito, cada lugar tem suas características próprias. Mas de uma coisa não podemos correr: haverá uma forte adoção de ferramentas tecnológicas.
Alguns cases de soluções sobre tecnologia no varejo
O Mateus Supermercado é um bom exemplo. A empresa fez IPO, a oferta pública de ações em bolsa, recentemente, não usa nenhuma solução terceira. Eles desenvolveram tudo próprio, desde o ERP adotado para integrar a gestão até todos os sistemas internos. É um baita case que a gente tem aqui no Brasil, algo realmente sensacional, que tem mais a ver com um caminho que eu pessoalmente acredito do que caminhos com a adoção apenas de soluções terceiras.
Lá fora quem está fazendo isso também é a Target, que tem sua estratégia de tecnologia toda baseada em plataformas open source. Então você tem apostas diferentes, estratégias diferentes. Na minha opinião, as estratégias open source de desenvolvimento próprio têm mais retorno a longo prazo, principalmente se forem coisas que são core do seu negócio. Você ganha com custos mais baixos e maior velocidade.
O impacto da tecnologia na decisão de compra do consumidor
Hoje em dia, a tecnologia tem um impacto total na decisão de compra do consumidor. Quando a pessoa pensa na tecnologia, não é só na loja onde efetuará sua compra. Porque atualmente a gente tem praticamente um duopólio na parte de mídia: você tem duas grandes empresas onde anunciamos, onde a gente vai fazer aquisição de clientes que são o Google e o Facebook.
O motivo é simples, a nossa atenção está aqui, está em Mobile Devices, no celular, então é aqui que a gente está olhando sempre, que está nossa atenção todo o tempo. Seja através do WhatsApp, do Instagram, de sites nos quais estamos buscando alguma coisa… E todas as nossas decisões e como nós tomamos decisões como consumidor, vêm de tudo que a gente vive aqui. As pessoas vêm indicando para a gente, os aplicativos que a gente usa…
Então, já faz algum tempo que toda a nossa decisão é baseada pela tecnologia, pelo celular, pelo que a gente tem na mão. Você usar a tecnologia para outras coisas: para a informação de uma comida, na loja, algumas outras coisas, são alguns detalhes. Mas todo mundo já tem um celular. É por aqui que a gente tem que chegar e que a gente consegue puxar atenção para trazer um cliente novo e se comunicar com seus clientes atuais.
O impacto da tecnologia na decisão do consumidor é total. Principalmente pela tecnologia móvel, daquele celular que a gente não larga da mão, que a gente acaba fazendo tudo. Se empresas querem anunciar bem elas têm que estar acontecendo e chegando no cliente aqui, através do celular.
A tecnologia na cadeia e a excelência operacional
O pessoal fala muito de empresas de tecnologia, mas não existem mais empresas de tecnologia. Hoje em dia, toda empresa tem que ser uma empresa de tecnologia ou você não vai sobreviver no mercado. Porque você pega uma empresa que tem pouca tecnologia, com o concorrente dele que tem tecnologia em todo o mercado, processos automatizados, tudo controlado. Se o cara vai operar tão melhor, tão mais barato, ter uma margem tão melhor, ele terá um diferencial competitivo que torna insustentável para outro continuar no jogo por muito tempo.
O uso da tecnologia em toda cadeia que vai fazer você conseguir ter uma ruptura baixa, o nível de serviço alto quando se fala de varejo. Eu aposto pessoalmente em mudanças como a do grupo Mateus ou da Magalu, com equipes de 180, 200, 1.000 engenheiros que operam com excelência nessa parte operacional.
Essas empresas têm uma margem muito maior porque elas operam muito melhor do que outras que têm muitos processos manuais sem todo esse controle. Isso dá mais margem para eles. Daí eles podem pegar essa margem adicional, que eles geram em um negócio e investir em crescimento de serviço, em frete grátis, que no fundo é uma estratégia de marketing, em aquisição de clientes… Isso vai virando diferencial absurdo. No papel parece que as margens dessas empresas são parecidas mas, o que eu chamo de “margem real”, é muito maior, porque elas só estão próximas porque as melhores estão investindo de maneira muito pesada em tecnologia e outros diferenciais que dão retornos exponenciais – ou seja, a margem pre-investimentos, gerada pela operação, é maior.
Por isso que quando a gente olha uma Magalu, ela vale tanto em bolsa e ela tem tanto potencial para crescer. Quando você olha o resultado da Magalu eles falam que dois por cento do resultado deles está sendo investindo em entrega rápida e marketplace, entre algumas outras coisas. Eles só chegaram nisso porque têm todos os processos arrumados. Tudo isso foi conquistado ao longo de quase duas décadas desde que eles começaram essa transformação na empresa.
Autosserviço: será ela o futuro da tecnologia no varejo?
No geral, há muita tecnologia nas partes de distribuição, logística, CD, etc… e quando o assunto é a importância da tecnologia no varejo, é importante perceber que todo mundo tem uma parte bem desenvolvida disso na parte do PDV, do caixa. Eu acho que a parte que a indústria ainda está bem atrás e que deveria investir mais é em todo o resto da tecnologia para operação de loja.
Assim, as lojas de varejo, no geral pelo que eu vejo, não são muito tecnológicas na operação interna de loja. O que normalmente eu vejo no mercado são as pessoas que pensam só no impacto pro cliente, na ponta. Eu vou colocar algo que vai ter um QR Code, que vai poder ver de onde esse produto veio e etc. São coisas legais? Sim, mas não é game changer no mercado.
Se você automatiza também com tecnologia todo seu processo de inventário rotativo, de recebimento de loja, como você guarda esse estoque, reposição de gôndola baseado nos seus dados… hoje em dia todo mundo que está com aplicativos como Rappi e afins em seus mercados que tem montanhas de dados ali que não são utilizados, você começa a construir a tecnologia em volta disso. Para mim, é a parte que daria mais retorno para a maior parte das empresas, sem sombra de dúvida.
Automação comercial no varejo: um supermercado do futuro?
Quando as pessoas pensam em tecnologias às vezes só pensam em automação, tudo 100% por robôs. Algo como uma loja da Amazon Go, onde você não vai nem precisar passar no caixa para fazer o checkout. Só que eu acho que temos um espaço antes nessa parte do varejo em geral, não só do varejo de supermercado. Essa oportunidade está em maximizar os funcionários da operação que a gente tem dessas lojas e fazer softwares que eles podem usar em devices que já carregam com eles todo o tempo.
O dia-a-dia, os processos de loja que você tem que fazer, ser monitorado, ser controlado e fazer esses processos acontecerem com a garantia que estejam na ordem, sem erros, sem depender tanto de uma supervisão pessoal. Para mim, essa automatização do varejo físico deveria vir primeiro que outras automatizações.
A gente acaba pensando em algo totalmente fechado ou que você não precisa passar no caixa, etc. Seria muito mais olhar para dentro da casa do que para fora da casa, para o cliente.
O case da Rappi
Quando você pega uma Rappi, por exemplo, para falar de automatização. O aplicativo que a gente vê é a menor parte de tudo que eles desenvolveram, de toda a tecnologia que eles alcançaram no processo. Porque a tecnologia é uma ferramenta para a gente colocar o processo. Então sem um processo, sem esse conhecimento de gestão, você não faz nada.
E daí quando você pega a parte interna do software da Rappi, toda essa plataforma para a operação e entrega deles, como eles controlam essas entregas, se está atrasando e se não está, se seu produto está faltando, como eles controlam todas essas pontas interagindo para saber quais produtos vendem… É ali que está o grande valor. E não se trata de algo que o cliente veja diretamente, mas o cliente sempre vê indiretamente: quando recebe o pedido dele completo, faltando poucos produtos, sem erros, recebe no tempo certo e fica satisfeito.
Eu acho que é esse tipo de automatização que tem que ser feita porque gera uma economia de tempo, de dinheiro, de mão de obra, enfim… todos os quesitos do que a gente pode ter. O varejo sempre teve uma margem pequena, mas investimentos em tecnologia certas, nos lugares certos podem liberar margem ali, como no exemplo da Magalu. E essa margem maior não quer dizer que vai ficar. Você vai reinvesti-la em outras coisas que vão trazer diferenciais. Seja a tecnologia, seja entrega rápida, sejam novos produtos, novos modelos de loja, o que quer você queira investir no seu negócio.
Desafios no uso da tecnologia no autosserviço
Um dos temas mais falados no varejo é a implementação de self-checkout ou mesmo lojas onde não há caixa. O primeiro ponto de atenção sobre tecnologia no varejo é que a maior parte das empresas grandes do setor são baseadas em sistemas legados muito antigos e muitos sistemas diferentes. Alguns até têm atualizações e mudanças ao longo do tempo, mas todos esses sistemas foram colocados em épocas diferentes, com tecnologias muito diferentes. Pergunto: quão bem eles se comunicam? Quão bem essa arquitetura foi feita? Normalmente, este acaba sendo um problema na maior parte das empresas clássicas.
Para os “Brick & Mortar”, como a gente chama os varejistas de lojas físicas, jogar isso tudo fora e começar a desenvolver tudo do zero é realmente caro. Muitas vezes, quem está à frente da gestão não vê um valor em fazer essa migração. E por que veriam valor em construir tudo do zero? Então, para as empresas se transformarem digitalmente, o primeiro desafio está nas pessoas. Sempre são pessoas. Você tem que convencer as pessoas que isso é importante, elas têm que ver valor nisso. O que não é uma tarefa fácil.
Depois que nós convencemos as pessoas para fazer isso, você tem investimento grande, você tem que ter planejamento muito bom durante anos: como você vai investir, como você vai fazer isso para trazer esse retorno todo do que você quer. Se bem feito, vocês vira um Grupo Mateus que consegue um IPO gigantesco e tem uma empresa que conseguiu ter todos sistemas próprios e opera como um relógio na parte de dentro. Uma empresa operacionalmente muito boa, mas para fazer o que eles fizeram ali, não foi feito do dia para a noite. Tinha uma visão clara que foi executada ao longo de muitos anos até chegar a esse ponto.
Moral da história
O maior desafio é mudar essa cabeça de “não somos uma empresa de tecnologia, somos um varejista só” para “hoje em dia todo mundo tem que ser uma empresa tecnologia e a gente também tem que fazer isso”. Algo que todos poderiam olhar, é o caso da Target, há diversas entrevistas do CIO deles explicando todas estratégias de build or buy, de quando eles constroem, quando eles compram algo pronto. E o porque isso é importante. Eu acredito que as pessoas se interessariam bastante ali para ver uma outra estratégia de tecnologia diferente do habitual que foi realizado por anos no varejo.
Basicamente, tecnologia no varejo não diz só respeito ao salão da loja ou ao e-commerce. É preciso ter uma visão geral de toda a cadeia e entender onde automatizar e, sobretudo, por quê automatizar. Por fim, é justamente esse o grande desafio, a mente das pessoas para a inovação e a transformação digital.