Garry Kasparov é considerado por muitos o maior enxadrista de todos os tempos. Grande mestre e ex-campeão mundial de xadrez, o russo acompanhou de perto o desenvolvimento da inteligência das máquinas praticantes do esporte. Num intervalo de apenas doze anos, passou de homem capaz derrotar 32 máquinas jogadoras de xadrez simultaneamente a um ser que precisou suar a camisa contra apenas um computador.
Mas por que Garry Kasparov é relevante quando falamos do futuro do trabalho? Simples, ele é um ótimo exemplo quando se trata da dualidade entre humanos e máquina e sobre como isso não é uma questão de vida ou morte. Com base na sua experiência, vamos tirar algumas lições e tratar do medo do futuro.
Qual é o futuro do trabalho?
Empregos tradicionais estão desaparecendo. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Oxford fizeram um estudo sobre o futuro do trabalho e concluíram que praticamente um em dois empregos possui um alto risco de ser automatizado por máquinas.
Esse nem é um futuro tão distante assim: já está acontecendo, hoje, nesse exato momento. O aprendizado de máquina, ou machine learning, em inglês, é a tecnologia responsável por grande parte dessa revolução. É o ramo mais poderoso daquilo que poderá vir a ser chamado, de fato, de inteligência artificial. Permite que máquinas aprendam com dados e imitem algumas das coisas que os humanos fazem.
Na Primeira Revolução Industrial, máquinas substituíram força de trabalho: velocidade, precisão e potência eram os principais atributos dos equipamentos que tornaram boa parte dos trabalhadores braçais obsoletos. Mesmo décadas depois, o ser humano ainda detinha (reparem o verbo no passado) o monopólio do pensamento.
Garry Kasparov: humano x máquina
A tecnologia da informação trouxe máquinas capazes de processar, organizar e entregar dados com capacidade infinitamente superior a qualquer ser humano. Até mesmo do maior campeão (humano) de xadrez da História. Quando aconteceu a disputa Garry Kasparov – Deep Blue, a principal vantagem apresentada pelo então supercomputador da IBM era calcular dezenas de milhões de possíveis jogadas por segundo e escolher aquela que desse menor chance de defesa pro adversário. O homem venceu por 4 a 2. Só que de 1996 pra cá, muita coisa mudou. Inclusive no ano seguinte, quando o russo enxadrista perdeu por 2,5 a 3,5 a revanche, mostrando muito nervosismo contra a rival de 1,4 tonelada.
A singularidade humana se refugiou na criatividade: máquinas podem até processar informação mais rápida, mas a capacidade de criar o novo é totalmente humana. Será? O processo de composição musical, por exemplo, não poderia ser expresso em equações matemáticas? Vamos falar, então de uma nova disputa de xadrez. Mas desta vez, não é homem X máquina. Mas dois computadores jogando entre si.
A partida de xadrez máquina x máquina
Em dezembro de 2018, AlphaZero, da empresa DeepMind, esmagou o software Stockfish. E o que isso tem de importante? O Stockfish 8 foi alimentado com jogadas e partidas criadas por humanos. Já o AlphaZero recebeu apenas instruções básicas, as regras gerais do jogo, e foi deixado livre para criar a sua estratégia. Em apenas 4 horas, ele desenvolveu seu estilo de jogo com autotreinamento. A DeepMind, que pertence ao Google, divulgou algumas das partidas e outras conclusões sobre a pesquisa em sua página.
The implications go far beyond my beloved chessboard… Not only do these self-taught expert machines perform incredibly well, but we can actually learn from the new knowledge they produce.
(As implicações vão muito além meu amado tabuleiro de xadrez… Essas máquinas auto-didatas não apenas têm um desempenho incrivelmente bom, mas nós podemos realmente aprender com o novo conhecimento que elas produzem.)
Garry Kasparov
Maior jogador humano de shogi e mestre em xadrez, o japonês Yoshiharu Habu afirmou que o computador tem um “estilo único de jogo” que mostra novas possibilidades de jogo para as pessoas.
Sim, meus caros leitores: os computadores já têm o que ensinar às pessoas. Conhecimento criado por eles. Estaremos chegando na era dos pós-humanos? Vamos alcançar em poucos anos a singularidade tecnológica? Fica pra outro artigo.
Precisamos ter medo do futuro do trabalho?
A velocidade e a profundidade das mudanças que estamos vivendo deixam muitos de nós desnorteados. Há uma série de disrupções no mundo do trabalho, sim. E isso exigirá novos formatos de economia que abarquem essa nova realidade. Mas não precisamos ter medo do futuro. Na realidade, nem medo das máquinas precisamos ter. Vivemos, hoje, o melhor momento da humanidade, com maior expectativa de vida, menor índice de pobreza e fome, maior educação e respeito às liberdades individuais. Claro que há muito a avançar, mas até o momento temos usado a tecnologia para facilitar nossas vidas.
Há, sim, atividades que ficarão obsoletas e vamos precisar aprender a lidar com essa necessidade de constante atualização – e até de mudança completa nas atividades laborais que exercemos. Até o conceito sobre o que é trabalho deverá mudar nos próximos anos. Desta forma, aprender a desaprender e a aprender de novo será essencial para manter nossa relevância no cenário em que as máquinas passam a substituir até mesmo o que considerávamos trabalhadores bem qualificados.
Preciso ter medo das máquinas?
A máquina foi invenção do homem e sua evolução é um triunfo da humanidade, não esqueça disso. Sim, várias das profissões que conhecemos hoje vão ser executadas por máquinas. Elas vão ser professores, doutores, motoristas, mas serão “inteligentes”? Quanto mais repetitiva e automatizável é uma função, maior a probabilidade do humano ser substituído rapidamente pela máquina. Atividades que exijam empatia, sensibilidade, cuidado e capacidade de conectar conhecimento aparentemente diverso são aquelas mais essencialmente humanas.
Garry Kasparov sintetiza bem a essa linha de pensamento:
“Máquinas possuem cálculos. Nós possuímos compreensão. Máquinas possuem instruções. Nós possuímos propósito. Máquinas possuem objetividade. Nós possuímos paixão. Não devemos nos preocupar com o que nossas máquinas podem fazer hoje. Como alternativa, devemos nos preocupar com o que ainda não podem fazer, pois precisaremos da ajuda das mais novas e inteligentes máquinas para tornar nossos maiores sonhos em realidade. Se falharmos, não será por conta de nossas máquinas serem muito inteligentes ou insuficientemente inteligentes. Se falharmos, será porque crescemos complacentes e limitamos nossas ambições.”
O que sobreviverá no futuro do trabalho?
O trabalho já está mudando, mas não vai sumir. No futuro do trabalho, já percebemos que algumas profissões são mais vulneráveis que outras e os cargos que envolvem certas características que as máquinas não conseguem mimetizar com tanta facilidade ainda são os mais seguros. A psicóloga Marcia Tosin levantou alguns dados do Word Economic Forum e estamos falando de características como:
- Capacidade de resolver problemas complexos;
- Pensamento crítico;
- Criatividade;
- Liderança;
- Gestão de pessoas;
- Trabalho em equipe;
- Inteligência emocional;
- Julgamento e tomada de decisão;
- Orientação e serviços;
- Negociação.
- Flexibilidade cognitiva.
Quanto mais humanidade exigir a profissão, menos substituível pela mão de obra tecnológica ela é. As máquinas não conseguem competir conosco quando se trata de situações novas, e isso coloca um limite fundamental nas tarefas humanas que as máquinas vão automatizar. Criação, por exemplo, por enquanto ainda é monopólio do ser humano, especialmente em cenários onde as variáveis não sejam controláveis. Os movimentos inovadores num tabuleiro de xadrez, criados por softwares, são exemplo de uma criação que as máquinas já conseguem fazer.
Vejamos o que Anthony Golbloom falou sobre isso em uma palestra:
“No entanto, há coisas que conseguimos fazer, mas as máquinas não. As máquinas têm feito pouco progresso em lidar com situações novas. Elas não conseguem lidar com coisas que não viram muitas vezes antes. As limitações fundamentais do aprendizado de máquina é que ele precisa aprender através de grandes volumes de dados passados. Mas os humanos não. Temos a habilidade de ligar pontos aparentemente díspares para resolver problemas que nunca vimos antes.”
Mais uma revolução, agora com máquinas pensantes
As máquinas vão sim executar tarefas que garantiam empregos a seres humanos, só que não vai ser bem da forma como se imagina. E não quer dizer que não vão surgir soluções para minimizar o impacto dessa mudança no mercado de trabalho, ao contrário, elas já estão surgindo. Há, por exemplo, uma startup italiana que promete uma espécie de mesada para humanos que têm empregos ameaçados por robôs. Essa seria a Makr Shakr. Uma das grandes perguntas atuais é se o mais relevante é preservar empregos ou preservar a relevância dos seres humanos, buscando novas ocupações. Qual sua opinião?
O que podemos concluir é que no novo mundo não há lugar para obedecedores e que não devemos ter medo da tecnologia uma vez que somos nós que a desenvolvemos. E não tem parecer melhor para encerrar esse texto do que o de Garry Kasparov:
“Existe apenas uma coisa que somente os humanos podem fazer. E isso é sonhar. Então sonhemos grande.”