Sair do modo leitor

CRISPR: tesouras bioquímicas que editam DNA

Futurismo

Mesmo quem não é muito antenado aos avanços da ciência, já ouviu falar de engenharia genética. Dos transgênicos que já fazem parte do nosso cardápio a medicações que modificam o código e barram o avanço de doenças degenerativas, muito aconteceu na bioengenharia nas últimas três décadas. E o CRISPR é um dos avanços mais promissores.

O nome, que ainda gera estranheza, permite a substituição de parte do código genético de plantas, animais e até de pessoas. Mas, calma! Antes de achar que já dá pra comprar seu kit de CRISPR e trocar a cor dos seus olhos, vamos entender melhor o que essa tecnologia revolucionária vencedora do Prêmio Nobel da Química em 2020 pode fazer de verdade.

O que é CRISPR?

O nome CRISPR significa “Clusters of Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats”. Como é um acrônimo, escreve-se assim mesmo, todo em maiúsculas. E em português, como se fala? Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas. Se você não é cientista, deve continuar sem entender. Vamos ajudar.

Apesar da nomenclatura permanecer complicada independentemente do idioma, a tecnologia ficou conhecida justamente por sua capacidade de simplificar o trabalho dos cientistas. Trata-se apenas de uma ferramenta de edição de DNA muito mais fácil de usar que as demais conhecidas até aqui. Adotar essa ferramenta permitiu aos pesquisadores manipular genes com elevada precisão, rapidez e menor custo.

Origens do CRISPR-Cas9

É verdade que o CRISPR é uma das grandes promessas de tecnologia do futuro, mas sua origem vem da invenção de algo que pode estar na sua geladeira: o iogurte. A bactéria Streptococcus thermophilus que transforma a lactose em ácido lático, processo amplamente conhecido por quem gosta de gastronomia e pela indústria, tem um dispositivo especial no seu DNA.

Os primeiros cientistas observaram essas características em 1980 e em 2007 uma indústria de iogurtes constatou que a sequência estava ligada à defesa das bactérias. Seu gene tem uma sequência repetida que impede que vírus deixem seu alimento lácteo ficar impróprio para o consumo. Essa sequência é o CRISPR. Se voltar às aulas de Português, vai se lembrar o que é um palíndromo:

Ame o poema
Sacada da casa
Ireni ri
Arara
Socorram-me, subi num ônibus em Marrocos.

Lembrou? Palíndromos são palavras ou expressões que podem ser lidas de trás pra frente da mesma forma que sua grafia original. Será que agora Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas faz mais sentido para você?

Como o CRISPR tornou-se a chave da engenharia genética

O DNA é uma sequência de letras: AT GC. Na verdade, por quatro moléculas representadas por estas letras. As bases nitrogenadas são divididas entre purinas (Adenina e Guanina) e pirimidinas (Citosina e Timina). A descoberta do CRISPR abriu as portas, a partir do Streptococcus thermophilus, para o mapeamento de genéticas parecidas em outras bactérias que compõem a fauna e a flora do planeta. O que inclui a microbiota dentro de mim e de você – sim, temos um condomínio dentro do nosso corpo, essencial para nossa saúde.

A grande revolução, publicada em 2012, foi a descoberta que frequentemente estes pedaços repetidos são cercados por genes que vêm acompanhados de enzimas de restrição, as chamadas endonucleases. Isso explica o “regularmente interspaçadas” do nome. Trata-se de um delimitador natural, um sinalizador que pode usar o RNA como um localizador para saber onde o DNA, dentro do núcleo de uma célula, pode ser cortado. Isso quer dizer que é possível trocar um trecho que tem uma mutação que representa uma doença genética por um novo, saudável. De acordo com o pesquisador Feng Zheng, parece o comando CTRL+C e CTRL+V.

Como funciona o CRISPR-Cas9

O Projeto Genoma Humano, que em 2003 chegou ao fim da sequência de três bilhões de pares A-T ou G-T que compõem a nossa espécie, gerou festa e frustração. Sabíamos “ler” os seres humanos, mas não havia uma técnica que permitisse mudar algo indesejável – fosse uma doença, fosse uma doença degenerativa, a tendência a engordar ou a cor dos olhos. O trabalho liderado por duas cientistas, a norte-americana Jennifer Doudna e a francesa Emmanuelle Charpentier mudou esse jogo.

Foram elas que descobriram como usar o truque da bactéria Streptococcus thermophilus para editar códigos de espécies pluricelulares. O sistema é uma proteção contra ataques de vírus: elas identificam o código genético do invasor e guardam uma cópia como uma forma de estarem protegidas em caso de novo ataque. Quando o vírus tenta voltar, a proteína Cas9 funciona como uma tesoura e elimina parte do DNA, impedindo o vírus de se reproduzir.

A lição do Streptococcus thermophilus

Inicialmente in vitro, ou seja, em tubos de ensaio, as duas cientistas usaram o mesmo truque das bactérias em células de outras espécies. E nisso descobriram que a Cas9 consegue ser uma mensageira muito eficiente: basta entregar a ela uma imagem bioquímica da parte do DNA que se deseja recortar e ela vai buscar entre bilhões de letrinhas o trecho que deverá ser removido. O método é tão eficiente que pode substituir a mutação por uma nova sequência ou deixar que o DNA se regenere por conta própria.

Em resumo:

  1. Os cientistas detectam o fragmento de RNA a ser recortado.
  2. A proteína Cas9 prende-se a uma molécula chamada sgRNA;
  3. Em seguida, esse complexo Cas9-sgRNA vasculha toda o genoma procurando a sequência específica de DNA a ser recortado, guiada pelo sgRNA, que funciona como localizador bioquímico;
  4. O DNA é cortado e o novo fragmento de RNA é adicionado ao DNA, usando um tipo de tesoura molecular;
  5. O trecho recortado pode ser removido ou trocado por um novo saudável.

O futuro da edição genética

Modificar genes no interior das células antes da tesoura genética CRISPR-Cas9 era demorado e complicado, podendo até ser impossível, mas agora é possível alterar o código da vida ao longo de algumas semanas. A tecnologia tem, ainda, inúmeras aplicações: os pesquisadores esperam usá-lo para alterar genes humanos para eliminar doenças; crie plantas mais resistentes; elimine os patógenos e muito mais.

Jennifer Doudna, líder da equipe que descobriu a técnica em 2012, palestrou em um TED Talk três anos depois de publicar a descoberta e alertou sobre a utilização da tecnologia e seus limites éticos:

“Imaginem se pudermos criar humanos que tenham propriedades melhoradas, como ossos mais fortes, ou que sejam menos suscetíveis a doenças cardiovasculares, ou mesmo com propriedades que nós podemos considerar desejáveis, como cor dos olhos ou altura maior. A tecnologia do CRISPR nos dá as ferramentas para isso, levantando questões éticas que precisamos considerar.”

Debates éticos sobre a bioengenharia

Até por não ser claras quais serão as consquências de usar o CRISPR em humanos ou mesmo em animais, os pesquisadores são cautelosos. Quer dizer, nem todos os pesquisadores. Os primeiros bebês geneticamente modificados no mundo já nasceram. O cientista chinês He Jiankui usou a técnica para editar o genoma de Lulu e Nana, ainda como embriões, gêmeas filhas de um pai portador de HIV, de forma que nascessem sem o CCR5, uma das portas de entrada do vírus causador da AIDS. O objetivo era desativar o gene que permitia a infecção pelo vírus. E foi um sucesso, segundo anunciou He em novembro de 2018. Mas não foi um sucesso pra ele.

Um ano depois da publicação no MIT Technology Review, o cientista foi condenado e preso. A justiça chinesa, na sentença, citou uma terceira criança fruto de embriões alterados pelo pesquisador. Mas sobre este, não se sabe mais nada. Apesar de não haver legislação específica sobre edição genética na China, ele foi duramente criticado. Agora, cumpre três anos de prisão e ainda pagou multa.

Riscos da edição genética

Tudo é muito novo e não é possível dizer se haverá efeitos colaterais. Outro problema é saber o que poderia e o que não poderia ser modificado. Com exceção das pessoas que acham que, mais uma vez, a ciência está tomando o papel da divindade, boa parte considera razoável buscar formas de curar doenças, amenizar sofrimentos e estender a vida. Mas a técnica, por si, permite modificar todo o resto, potencialmente: filhos mais inteligentes, mais fortes, mais altos, sem miopia e todo o resto relacionado ao nosso código genético está passível de edição. E como seriam os filhos, netos e bisnetos de quem recebeu essas “melhorias”?

O sistema enzimátimo quimérico, como é classificado o CRISPR-Cas9, tem aplicações mais próximas da atualidade, como a melhoria de alimentos produzidos em larga escala. Aumento da quantidade de proteína, defesa contra pragas ou mesmo maçãs e cogumelos que não ficam escuros são possibilidades para a agricultura.

O Nobel de Química

A comunidade científica há muito especulava sobre quem seria reconhecido por seu trabalho de desenvolvimento das ferramentas de edição de genes. Em 2020, acabou o mistério com a escolha do Comitê Nobel, o mais relevante prêmio da pesquisa mundial: Emmanuelle Charpentier, agora na Unidade Max Planck para a Ciência de Patógenos em Berlim, e Jennifer Doudna, na Universidade da Califórnia, Berkeley são Nobel da Química.

Doudna e Charpentier e seus colegas fizeram um trabalho inicial crítico de caracterização do sistema. Vários outros pesquisadores foram citados – e reconhecidos em outros prêmios de alto nível – por sua contribuição para a tesoura genética. Feng Zhang no Broad Institute of MIT e Harvard em Cambridge, Massachusetts, George Church na Harvard Medical School em Boston, Massachusetts, e o bioquímico Virginijus Siksnys na Universidade de Vilnius na Lituânia também deixam sua marca na História da Ciência.

Dra. Jennifer Doudna e Dra. Emmanuelle Charpentier, vencedoras do Nobel da Química

Durante o anúncio, ocorrido em 7 de outubro de 2020, Claes Gustafsson, presidente do Comitê Nobel de Química, declarou:

“Há um poder enorme nessa ferramenta genética, que afeta a todos nós. Não só revolucionou a ciência básica, mas também resultou em colheitas inovadoras e levará a novos tratamentos médicos inovadores.”

Espera-se que o CRISPR seja cada vez mais aperfeiçoado e se mostre eficaz no tratamento de diversas doenças. Dito isso, os possibilidades de utilização da ferramenta devem ficar cada vez mais abrangentes e os limites éticos cada vez mais nublados. Quais são, para você, os limites que uma tecnologia com esse potencial deve ter?